2.6.05

Arte Moderna é Arte de Sonho

Adorei isso.

Por Fernando Pessoa

Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho.

Modernamente deu-se a diferenciação entre o pensamento e a acção, entre a ideia do esforço e o ideal, e o próprio esforço e a realização. Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. O mundo humano era pequeno e simples. Era-o todo o mundo até à época moderna.

Não havia a complexidade de poder a que chamamos a democracia, não havia a intensidade de vida que devemos àquilo a que chamamos o industrialismo, nem havia a dispersão da vida, o alargamento da realidade que as descobertas deram e resulta no imperialismo.

Hoje o mundo exterior é desta complexidade tripla e horrorosa. Logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento da impossibilidade. ( a Própria ignorância medieval era uma força de sonho). Hoje tudo tem o como e o porquê científico e exacto. Explorar a África seria aventureiro, mas não é já tenebroso e estranho, procurar o Pólo seria arriscado, mas já não é. O Mistério morreu na vida: quem vai explorar a África ou o Pólo não leva em si o pavor do que virá a encontrar, porque sabe que só encontrará coisas cientificamente conhecidas ou cientificamente cognoscíveis.

Já não há ousadia: basta a coragem física de um bom pugilista (?). Por isso as mais loucas tentativas de idealização dos nossos aviadores e exploradores não logram ser não ridículas, tão de estatura de alma mediana estas são. É que são homens de ciência, homens de prática. E os grandes homens antigos eram homens de sonho.

Os homens diminuem. Gradualmente, cada vez mais, governar é administrar, guiar. Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para interiorização cada vez maior - para o sonho crescente, cada vez mais para o sonho.

O poeta do sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva de Sicorax ( The Tempest de Shakespeare ). A música é essencialmente a arte do sonho: e o desenvolvimento da música, moderno todo, no que valioso e grande, é a composição suprema de quanto aqui teorizamos.

O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas. O poeta de sonho é geralmente visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o "quadro", a "paisagem" é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior.

Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho.

(...)

Havia 3 caminhos a seguir ante este novo estado civilizacional:
1) Entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida oca e ruidosa, o esforço sumamente esforço, a Natureza simplesmente Natureza - e este caminho seguiram Whitman, Nietzsche, Verhaeren, e entre nós, a corrente que incluiu Nunes Claro, Sílvio Rebelo e João de Barros.

2) Pôr-se ao lado, à parte dessa corrente, num sonho todo individual, todo isolado, reagindo inertemente e passivamente contra a vida moderna, quer pela ânsia medieval, quer pela fuga para o longe no espaço, quer para o estranho e o invulgar na vida - o Longe na vida afinal. Foi o caminho que seguiram Edgar Poe, Baudelaire ( fugindo para o estranho ), Rossetti, Verlaine ( para a Idade Média e para o Estranho ), Eugénio de Castro ( para a Grécia ), Loti ( para o Oriente).

3) Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho - e fugindo da " Realidade" nesse sonho. É o caminho Português ( tão caracteristicamente português ) - que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia.

Quem quiser compreender o simbolismo tem de contar com a sua tripla natureza. É:

1) Decadência do romantismo;
2) Um movimento de reacção contra o cientismo;
3) Um estádio na evolução ( ou princípio duma evolução ) duma nova arte. (...)

(...) O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho. (...)

(...) Em seu carácter, o sonhador mostra certas características: A assexualidade, ou parassexualidade, é um, e vidente; é a forma mais flagrante da sua incapacidade para lidar com a normalidade e a realidade das coisas. (...)
(...) O Infante D. Henrique é o perfeito tipo do sonhador. Desde a sua assexualidade até ao seu perfeito sacrifício dos outros - é um sonhador. Mas viveu no tempo em que se podia sonhar.

Hoje o sonho é sempre de coisas inexequíveis. O que se concebe como exequível é porque se concebe como cientificamente exequível, e o que se concebe como cientificamente exequível qualquer coisa não pode ser matéria de sonho,

(In Fernando Pessoa, Páginas de Estética, Teoria e Crítica Literária - Sobre Escolas Literárias - 9- A arte moderna é arte de sonho. 1913(?) ).

PS: Fernando Pessoa numa visão geral sobre o panorama artístico do seu tempo (atual, né?).